quinta-feira, 13 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS

Hoje morreu, em Campo Grande (MS), o poeta cuiabano Manoel de Barros, aos 97 anos. Há exatos 16 anos tive a enorme honra de entrevistá-lo, coisa rara, porque ele não gostava de dar entrevistas. O poeta exigiu que a conversa não fosse gravada e tive que anotar tudo num bloquinho da Folha de S.Paulo em velocidade cometa. Foi um papo delicioso, claro, num café do Leblon. O lúdico, onírico, quase surreal da poesia de Manoel de Barros me emociona. É como viajar de ácido sem ter tomado ácido. Bernardo Bernardo já estava uma árvore quando eu o conheci. Passarinhos já construíam casa na palha do seu chapéu. Brisas carregavam borboletas para o seu paletó. E os cachorros usavam fazer de poste as suas pernas. Quando estávamos todos acostumados com aquele bernardo-árvore ele bateu asas e avoou. Virou passarinho. Foi para o meio do cerrado ser um arãquã. Sempre ele dizia que o seu maior sonho era ser um arãquã para compor o amanhecer. Ao mesmo tempo, Manoel era um mago no uso das palavras, um laborioso esteta do léxico. Em nossa conversa, ele fala de um dicionário desbeiçado de tanto manuseio… Retrato do Artista Quando Coisa A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Vale a pena ler a entrevista (publicada originalmente no jornal Folha de S.Paulo em 10/11/1998). *** CYNARA MENEZES enviada especial ao Rio A poesia do mato-grossense Manoel de Barros, 81, deve menos à exuberante paisagem pantaneira que à inveja confessa que sente do matuto Bernardo, peão de sua fazenda há mais de meio século. “Bernardo é o que eu queria ser”, diz o poeta. Essa inveja que Manoel de Barros nutre por Bernardo é tão grande que muito do que há no novo livro do poeta, Retrato do Artista Quando Coisa, é, na verdade, inspirado no peão. A “coisa” é Bernardo, não Manoel. “Retrato do artista quando coisa: borboletas já trocam as árvores por mim”, diz o poema que abre o livro. É puro Bernardo, encarnação viva do “bom selvagem” de Rousseau, cuja inocência Manoel de Barros persegue como um tolo busca a sabedoria. Nos ombros de Bernardo, qual coisa que é, pousam insetos e passarinhos. Foi contratado pela família do poeta quando tinha 18 anos, para cuidar de uma tia de Manoel, louca furiosa e mantida presa em um quarto com grades. “Quando ela viu Bernardo, ficou mansa. Os puros têm uma inocência que transmitem aos loucos, aos bichos e aos poetas, também”, diz o escritor. A nova obra de Manoel de Barros está repleta desses “puros” de espírito tão invejados –há, além de Bernardo, o índio guató Salustiano e os andarilhos Passo-Triste e Pote Cru, saudados por ele como pastores que o guiarão até a inocência. A busca começou ainda nos anos 30. Nascido em Cuiabá em dezembro de 1916, aos 20 –bem antes, portanto, de beatniks e hippies aparecerem–, Manoel enveredou por uma viagem que começou na Bolívia e terminou em Nova York. Entre os índios bolivianos, “fascinado”, permaneceu seis meses. A cultura dos museus e teatros seria o choque que viria depois, já em território norte-americano. O encontro dos dois mundos fortaleceu a admiração pelos clowns do cinema que persiste até hoje. “Gosto de Chaplin, do Gordo e o Magro, dos Trapalhões, dos irmãos Marx”, diz Manoel. “Todos os dias acordo às cinco da manhã, tomo guaraná –meu pai me viciou–, vou para o escritório e lá fico descascando palavras. Quando desço, ao meio-dia, tomo um uísque (bebe álcool diariamente) e ligo a TV para ver o Chaves.” O escritor, que, é preciso dizer, também possui um jeito clowniano à Groucho Marx, com seu bigode e cabelos brancos em desalinho, explica que usa o palhaço mexicano como um respiro. “É para me livrar um pouco da literatura, que dá muita angústia.” Diz-se tímido, mas é simpático e bem-humorado. Conta que trabalha com lápis e borracha para apagar as “besteiras” quando aparecem. “A borracha é minha salvação”, brinca. A mulher, Stella, companheira há 51 anos, é a primeira leitora e a maior crítica. “Quando acho que já ‘pari’, mostro para ela, que diz: “Não está bom ainda, vai trabalhar’. Isso umas três vezes. Quando ela diz que está bom, aí eu mando para a editora tranquilo.” compendio (Capa da primeira edição do Compêndio…, de 1960) “As palavras se oferecem no cio para mim” Se Drummond dizia lutar com a palavra, Manoel de Barros afirma “bolinar” os vocábulos, como um amante desavergonhado. “As palavras se oferecem no cio para mim. Tenho uma relação erótica com elas”, diz o poeta mato-grossense. De tanto “bolinar”, seu dicionário favorito está “desbeiçado”, com a lombada torta das retiradas frequentes da estante. Diz não possuir inspiração, poemas que o acordem no meio da noite, mas, às vezes, vê surgir uma idéia, uma palavra. “Quem tem muita informação perde o condão de adivinhar”, ensina. “A poesia nasce do desconhecido.” O tempo para a “bolinação” diária foi obtido após anos de trabalho pesado na fazenda herdada do pai, no Pantanal, levantando cercas, construindo a casa, tratando do gado. “Passei dez anos dependurado em bancos. Não dormia, não fazia versos. Isso tudo só para conquistar a vagabundagem. Não sou Dostoiévski para escrever sob pressão. Construí meu ócio”, diz. Trauma de juventude: morou no Rio na mesma pensão que Graciliano Ramos e ainda guarda a visão do escritor apertado com família e filhos em um quarto, escrevendo em um canto, o copo de pinga e muitas bitucas de cigarro à frente. Manoel já era escritor naquela época. Escreveu seu primeiro livro, Poemas Concebidos sem Pecado, aos 19. Ficou conhecido, porém, só aos 64, em 1980, quando Millôr Fernandes, que ilustra sua nova obra, recebeu um livro seu e o divulgou. Surgiram os rótulos: “poeta ecológico”, “surrealista”, “primitivo”. O último é o menos rejeitado. Ecológico é o pior. “Poesia para mim é linguagem, não paisagem”, diz. “Dentro de mim existe um lastro que é o brejal. Misturo dicionários com o brejo, não faço nada mais do que isso.” Não só coloca o Pantanal como elemento (e não tema central) de sua obra, como diz adorar o Rio, onde passou parte da infância e juventude. Uma frase sua encerra a discussão: “Vivo no Pantanal, mas gosto mesmo é do Leblon”. Tão recente, a fama o incomoda. Entrevistas, só sem gravador. Mas, quando fala dos prêmios que têm recebido, os olhos pequenos brilham de contentamento. Na quinta-feira passada, no Rio, recebeu o mais recente deles, pelo reconhecimento da obra, concedido pelo Ministério da Cultura. Então se metamorfoseou de vez em Bernardo, na reação simples e sem vaidade, como peão que embolsasse os ganhos pela empreitada. “Gosto de prêmios quando tem dinheiro. Esse é bom, “vinte e cincão’ (R$25 mil). Descobriram que tenho uma obra.” *** Assista também ao documentário Só Dez Por Cento É Mentira, de 2008, dirigido por Pedro Cezar. Uma viagem no universo de Manoel de Barros com entrevistas inéditas do poeta. Como bônus, um vídeo com os poemas de Manoel de Barros, desenhos de Evandro Salles, música de Tim Rescala, roteiro de Bianca Ramoneda e direção de Márcia Roth: histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo. Por Cynara Menezes Em CINE MORENA @cynaramenezes

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